A Lei da Palmada – Por Armando de Oliveira Neto*

Mais uma vez o amigo Armando, médico-psiquiatra, aborda tema importante, a lei que condena  castigos físicos impostos às crianças, conhecida por todos  como  Lei da Palmada.

Tão logo essa lei começou a ser discutida de forma mais ampla, solicitei a ele (ou talvez ele me comunicou que abordaria o tema) artigo a esse respeito. Assunto candente e muito constante   no começo deste ano, agora,  é  tratado aqui no Boca de maneira mais profunda e, ao mesmo tempo, de fácil compreensão para leigos.

A esse respeito, apenas uma curiosidade. Existe no Brasil uma teoria que diz: avô rico, filho nobre, neto pobre. Meu amigo José Vaidergorn há muito tempo me disse: filho de intelectual já é uma merda; neto, então, nem se fala.  Conhecia minha, filha de artista plástica   famosa, era incapaz de dar um pito nas filhas sem antes ler o que o Piaget achava do assunto.

Voltando a falar/escrever sério.

Com a Palavra, Armando de Oliveira Neto, que tem o poder de facilitar o entendimento de assuntos complexos.

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Em resposta, indignada por sinal, aos acontecimentos que giram em torno dessa famigerada “Lei da Palmadas” não poderia me esquivar de tecer alguns comentários sobre o tema.

Em resumo, de acordo com o jornal O Estado de São Paulo, de dia 15/02, em quadro sinóptico “Como fica”, encontramos que se define Castigo Físico como o uso da força física, que resulte em sofrimento à criança, tendo como exemplos palmadas, beliscões, empurrões e prevê, como Punição aos Infratores, acompanhamento psicológico e advertência judicial, inclusive com multa de 3 a 20 salários mínimos para médicos, professores e agentes públicos que não denunciarem castigos físicos, maus-tratos e tratamento cruel (Caderno C 6).

Lya Luft, em sua apresentação na Revista Veja (pg. 18, de 04/01/2012), escreveu que “não gosto do politicamente correto: ele muitas vezes tem um ranço de hipocrisia… considero a tal lei uma excrecência a mais na nossa legislação e na nossa cultura. E é perigosa, numa sociedade que vai ficando denuncista e policialesca, cada vez maiores seus olhões de big brother”, em referência ao romance de George Orwell. Denuncia, dessa forma, a criação de “um plano nacional de convivência familiar, no mínimo bizarro”.

A psicopedagoga Maria Irene Maluf, em Análise, no mesmo jornal acima citado, assinalou que “a disciplina como um fim é ruim de qualquer jeito… é imprescindível que cada um assuma o seu papel: aluno é aluno, pai é pai e professor é professor. Assumir isso detonaria o movimento atual em que todo mundo manda e ninguém obedece. Hoje falta educação de valores e a criança não recorre ao adulto, mas usa-o e o manipula para conseguir o que quer. Diz que a escola o está perseguindo e o pai, muitas vezes, embarca nisso… A idéia de que às vezes a viagem é mais importante que o destino funciona bem em educação. Principalmente quando se fala em disciplina”.

Apresentei as considerações dessas personagens para ilustrar que não estou sozinho nas reflexões que desenvolverei a seguir, embora traga algumas informações técnicas sobre a questão.

Questionar o que hoje se considera o “politicamente correto” seria uma repetição do que já foi abordado, mas aproveito para parafrasear o Prof. Dr. Walter Edgar Maffei: “um idiota saca e todos os outros vão atrás”, expondo a pouca capacidade reflexiva e questionadora a respeito de conceitos, quer novos quer reformulados os antigos.

Para se entender o significado da Palmada, há de se buscar na Etologia suas raízes: Konrad Lorenz e seus companheiros estabeleceram, desde os anos 30, o Estudo Comparado do Comportamento Animal, com o intuito de se compreender as atitudes do ser humano.
Para isso é preciso lembrar que nós da orelha para baixo somos completamente animais e para cima achamos que não somos, o que não corresponde à verdade, muito bem exemplificada nessa Lei da Palmada, que contém o conhecimento e a acuidade elaborativa de um muar.

Se não vejamos que em todas as espécies animais, que vivem em grupos, em sociedade, há regras rígidas de comportamento:
1.    Lobos obedecem ao líder da matilha, o alfa, que tem como obrigação, baseado na experiência, de escolher uma presa para o abate e todos os que participam da caçada acatam sua indicação. Aquele que não o faz pode ser banido do grupo, o que significa morte quase certa.

2.    Em manadas de elefantes, a aliá matriarca “ensina” fisicamente as regras de convivência entre os indivíduos e, ao atingir certa maturidade, os machos jovens são expulsos ao não aceitarem essas orientações. Há uma experiência funesta pelos resultados desastrosos na África onde uma região, onde os elefantes tinham sido exterminados, foi repovoada primeiramente por jovens machos, separados de suas manadas prematuramente, não tendo tempo hábil para aprender, com as mãe, tias e irmãs mais velhas, as regras de interação com os seres humanos. O resultado foi que acabaram invadindo as aldeias, saqueando as plantações, chegando a matar aldeões… até serem mortos.

3.    As galinhas obedecem à rigorosa ordem para a acomodação nas árvores, que pode ser observado nos galinheiros antigos das fazendas: as do grupo alfa dormem nos galhos mais altos e as ômega nos mais baixo, estando a serviço da lei do mais forte, pois se um predador aparecer alcançará primeiro as dos galhos inferiores. A disputa pelo melhor posicionamento no grupo pode ser constatado em qualquer praça onde tenha pombos, pois ao receberem alimentação comem primeiro os alfas, após uma breve escaramuça entre eles, quando confirmam ou modificam suas posições.

Esses três exemplos ilustram a relação pautada pela hierarquia e verticalização das relações, assim como a transgressão dessa regra sendo castigada e isso pode ser observado, desde o início de nossa História, muito bem documentado no Código de Hammurabi e sua conhecida Lei de Talião, resumida pelo “olho por olho, dente por dente”.

Moisés recebeu de Jeová, além da Palavra Nominativa de Deus, doze Mandamentos, ou Leis, ou seja, uma codificação do SIM e do NÃO, o que seria permitido ou proibido pelas Leis Divinas e aqueles que não as obedecessem seriam punidos com a morte: incinerados (Sodoma e Gomorra), afogados (exército do faraó) ou simplesmente mortos (os primogênitos egípcios), lembrando que o primeiro a receber uma punição, e injusta por sinal, foi o Arcanjo Lúcifer.
Cronos devorava qualquer um dos seus filhos que remotamente o ameaçasse, mas foi morto e servido em banquete pelos sobreviventes comandados por Zeus que se apropriou de muitos dos comportamentos do pai.

A esse respeito há a leitura de Freud sobre esse banquete totêmico cujo significado foi apresentado no Complexo de Édipo: destrói-se o pai castrador e, ao ingerí-lo, está se apropriando seus valores, construindo-se as bases do seu Super-Ego, sendo esse processo considerado universal à espécie humana, mas também observável em todo reino dos animais que vivem em grupos sociais, ou seja, a substituição de uma geração de dominantes pela mais nova, geralmente com morte do perdedor.
O temor da perda até da vida passa a ser um dos constituintes do que seria a base do respeito à autoridade.

Na espécie humana esse respeito apoiou-se nas regras de relacionamento, com a inseparável punição à transgressão: o castigo tornou-se elemento edificador das relações humanas.

A codificação do Sim e do NÃO, nos dias atuais, está explicitada na Declaração dos Direitos Humanos, na Constituição, nas Leis, nos Códigos, na jurisprudência e nos usos e costumes do povo, assim como o sistema de punição para aqueles que a desobedecerem.

Prêmio ao SIM,  castigo  ao NÃO formam as bases da organização social, estruturadas desde os primórdios de nossa cultura e aplicadas pelos representantes dos deuses, os curandeiros, e depois os reis, imperadores e suas representações atuais nos presidentes, primeiros-ministros e até ídolos, na evolução da complexa trama das relações humanas ao longo da história e, na atualidade, os Códigos, como o Penal, deveria versar sobre o tema Castigo.

Pavlov e Skinner descreveram, na Psicologia Comportamental, as implicações do Prêmio e do Castigo no comportamento humano.

Em relação às crianças, tema central desse escrito, a História nunca lhes foi favorável relembrando os primogênitos dos egípcios, assim como os escritos na Idade Média em relação à morte de infantes, quando as mães lamentavam mais a perda de um porco que a de seu rebento.

No romance “Oliver Twist” o tratamento dado ao pequeno protagonista denunciava a violenta forma de se lidar com crianças na Inglaterra vitoriana, que nos anos 70 solicitava, em anúncios com imagens radiológicas de fraturas afixadas no Metro, aos adultos que não as maltratassem a esse ponto.

Mas houve uma mudança paradigmática na forma de se entender as crianças.

A partir dos anos 60 e 70 houve uma nítida mudança no modo de se entender e educar e, como exemplo, lembro-me que apanhei, assim como meus colegas de bagunça, de régua de madeira ou fui levado pendurado pela orelha até a sala da Diretoria do Colégio, onde ficava de castigo até minha mãe me buscar, sabendo que depois teria que me explicar ao velho, o que geralmente não conseguia por motivos óbvios e então se completava a punição aos feitos que realizara.
Hoje, não sei se por lenda ou folclore, uma criança, que foi repreendida pelo professor, ameaçou-o dizendo-se ser filho de fulano que tinha muito dinheiro e que poderia expulsá-lo da escola e que teria sido confirmado quando o diretor exigiu retratação do pobre docente.

Quando trabalhava em atendimento de professores em um grande hospital da capital, ouvi muito relatos coincidentes, inclusive com reportagens em jornais e revistas, nos quais eram ameaçados até de morte pelos alunos que tinham tirado notas baixas ou reprovados por qualquer outro motivo.

Assim lá se foi para o esquecimento o conceito de verticalização das relações com as crianças e, para não ser pessimista com a ideia de inversão,  penso numa horizontalização: crianças passam a ter tanto poder quanto os adultos.

E muito do que se diz sobre crianças cabe perfeitamente nesse alerta, e isso não é de hoje, pois, em sua Tese de Livre Docência para a Cadeira de Pediatria da Faculdade de Medicina da USP, o Prof. Dr. Pedro de Alcântara, em meados dos anos 40, definiu “hipertrofia de autoridade” como sendo o comportamento de crianças que dominavam seus pais, sintetizado no exemplo de uma pequena paciente que exigia “maçã se não tiver”.

Em outro escrito apresentei minha interpretação sobre esse fenômeno: ao se educar crianças pautadas na satisfação de seus desejos (drogas, sexo e rock & roll), criamos futuros consumidores que movimentarão as engrenagens da nossa economia, sendo essa a vertente familiar da “obsolescência programada”, o que me deixa incrédulo e desesperançoso quanto a uma possível mudança.

Para que isso tenha alicerce em nossa cultura parental há necessidade da mudança em alguns conceitos, sendo o do binômio SIM x NÃO e o de Castigo os mais importantes.

O que é SIM e o que é NÃO?

Houve tempo que os Dez Mandamentos foram suficientes para essa codificação, mas, com o vertiginoso aumento da complexidade das relações humanas em nossa época, não é mais possível neles nos pautarem em nossas ações.

Quando criança, eu  assistia aos seriados no clube, antes da vinda da televisão; os mocinhos eram facilmente reconhecidos, pois usavam chapéu branco, cavalo branco, revólver branco e principalmente assumiam uma postura ilibada frente aos bandidos, que eram maus, com chapéu preto, cavalo preto, etc. Os primeiros terminavam bem, com as mocinhas, e os bandidos mal, presos. Hoje os bandidos são mocinhos;  justiceiros  não mais usam chapéus pretos, e combatem os mocinhos que são corruptos, assassinos…

E depois se culpa os brinquedos de armas como os grandes incitadores da violência na sociedade e não os enredos que permeiam as relações humanas: quanta inocência, aqui entendida em sua concepção etimológica, ou seja, quanta falta de ciência e conhecimento.

Quando se estuda o referencial comunicacional do SIM e do NÃO, pode-se notar que há duas componentes, a digital e a analógica.

A digital é aquela representada pela leitura direta da comunicação, o NÃO e seu significado, o impedimento, a obstrução, o bloqueio.

A Analógica é aquela que necessita o estabelecimento de uma relação com o fato, um paralelismo, uma coerência, uma complementação, podendo estar a serviço de um reforço ou de um enfraquecimento do significado.

O NÃO, que nos interessa, deve ser complementado por vários atributos comunicacionais como um semblante fechado, uma sisudez, sobrancelhas contraídas, rima bucal arqueada, gestual de membros superiores firmes, entonação de voz grave, com aumento do volume, toques corporais incisivos e, se necessário, palmada!!!

É assim que qualifico a palmada, uma comunicação analógica confirmatória e complementar do NÃO.
Aviso aos inocentes: palmada não é surra, maltrato…

Orquestra-se no seio de nossa cultura, ocidental burguesa capitalista, uma estratégia de alijar o NÃO de mais um de seus instrumentais, a PALMADA, construindo e confirmando a premissa que o “Brasil é o país da impunidade”. As sequelas das extirpações desses instrumentais podem ser encontradas em qualquer noticiário atualizado envolvendo a relação crime/castigo e agora chegando ao mundo infantil.

Espero ter, pelo menos, acrescentado alguns pontos de reflexão sobre o tema, contribuindo para sua opinião a respeito da “Lei da Palmada”.

Armando de Oliveira Neto  S.P. Abril de 2012

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*Armando de Oliveira Neto
Médico Psiquiatra
Aposentado do Serviço de Psiquiatria e Psicologia Médica
Do Hospital do Servidor Público Estadual
Médico Assistente do Hospital Infantil Cândido Fontoura
Professor/Supervisor pela Federação Brasileira de Psicodrama

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Se quiser ler mais esclarecedores e oportunos  artigos  de Armando de Oliveira Neto, clique aqui – O primeirO texto que vai aparecer é esse mesmo e o segundo  não é do Armando, apenas cito seu nome para corrigir leve injustiça que eu havia cometido.  Os seguintes são dele.  Desfrutem e aprendam com quem entende.

3 pensou em “A Lei da Palmada – Por Armando de Oliveira Neto*

  1. Olá Armando. Parabéns pelo artigo. Concordo na íntegra. Embora possa parecer o obvio, a impressão é que vivemos um momento de cegueira coletiva sobre o assunto.
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    Prezado Luiz Carlos:

    Não entendo suficientemente o tema. Mas também achei muito bom o artigo do nosso amigo Armando.

    Abraços
    Paulo Mayr

  2. Mais uma vez o Ilustre Dr. Armando nos presenteia com seus ensinamentos. Parabéns pela matéria.
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    Caro Ricardo:

    Bom vc ter gostado. Também gostei muito.

    Abraços

    Paulo Mayr

  3. Meu querido Armando, antes de mais nada seria preciso traduzir o ter “aliá” pois, se alguns legisladores lerem seu artigo não apreenderão o termo.
    Piadas a parte, não há o que contestar seu raciocínio, apenas ouso acrescentar algumas idéias minhas.
    1. Não é interessante – a alguns setores – a manutenção do respeito e da obediência pois, em assim sendo, surgirão óbices à pretensão de controle das massas;
    2. Não é interessante – a alguns setores – a manutenção da hierarquia já que, dela decorreria a aceitação de que algumas decisões não estão em nossas nãos, ao passo que outras estariam. Surgiria, assim, uma sensação de não ser onipotente;
    3. Por outro lado, considerando-se os últimos 40/50 anos, a lei em pauta só demonstra como um trabalho bem coordenado, bem planejado e bem executado de desmantelamento de uma cultura traz resultados duradouros e que ficam impregnados na população que foi alvo desta manobra.
    Assim, meu caro amigo, chegamos ao ponto de denominado-se de forma dolosamente errada uma situação médica – anencefalia – quando o correto seria‘meroencefalia’, já que ‘mero’ significa
    parte, como lecionado pelo Doutor Rodolfo Acatuassú Nunes, Professor Adjunto do Departamento de Cirurgia
    Geral da Faculdade de Medicina da Universidade
    Estadual do Rio de Janeiro.
    Ou seja, por meio da quebra da verticalidade, obteve-se a horizontalização da ignorância, das aberrações sociais, sem falar-se em outras aberrações.
    Desculpe por estender-me, mas… o tema é muito provocador.
    Um beijo e um queijo.
    ++++++

    João Carlos:

    Vc faz bem em estender-se em seu comentário. Faça-o sempre que quiser. Vamos ver se o amigo Armando escreve mais vezes aqui no Boca.

    Abraços

    Paulo Mayr

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