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Em Defesa de um Certo Medo

Quando publiquei aqui no Boca no Trombone
Liberdade é uma Coisa; Barbárie é outra, http://bocanotrombone77.blig.ig.com.br/2008_06.html#post_19062956 a respeito do comportamento absurdo das pessoas no cinema, meu amigo Armando de Oliveira Neto, Médico Psiquiatra, Professor/Supervisor pela Federação Brasileira de Psicodrama, entre outras atividades,enviou comentário explicando que a causa daquilo era a falta (ausência) do medo. Escreveu ele:

(…) Desenvolvo uma hipótese que a falência das estruturas sociais, aqui e lá fora também, é creditada ao desaparecimento do MEDO: não se tem mais medo de nada, as crianças do bicho papão, do homem do saco; o religioso não é mais um temente a Deus; as leis não punem e por aí caminham minhas reflexões. Se for de seu interesse poderei detalhá-las oportunamente”

Imediatamente, respondi que era sim de meu interesse e que tinha certeza de que os leitores do Boca no Troambone ficariam contentes em poder ler abalizados comentários de competente profissional da área. Generoso, ele acaba de enviar seu artigo, cuja íntegra segue abaixo.

É longo. É ótimo!!!

Em Defesa De Um Certo Medo
por Armando de Oliveira Neto.

Esta reflexão teve origem durante atividade de orientação de acompanhantes (pais, avós, tios, etc.) de crianças internadas em hospital pediátrico de grande porte, na capital de São Paulo.
Uma das mais recorrentes queixas devia-se ao comportamento de crianças e adolescentes que eram apresentadas como malcriados, agressivos, desrespeitadores e/ou outras queixas similares.
Durante o levantamento de dados clínicos, salientava-se uma postura parental comum a todos eles: a falta do exercício de um certo pátrio poder. (grifo do Boca no Trombone)
Como conseqüência, as crianças não incorporavam noções como limites, disciplina, ordem ou respeito, tendo, como ponto comum, a não articulação interna do significado da palavra NÃO.
Os conflitos de relacionamento surgiam como resultado direto desta bipolaridade: de um lado as crianças que querem e de outro os pais que não deixam e, pelos relatos apresentados, havia vitória, com indiscutível vantagem, para as primeiras.
Ao se perguntar “o que há de errado nesta situação?”, originaram reflexões que são apresentadas a seguir e que caminha sobre a questão do MEDO.

Durante o processo de adaptação das espécies animais, um elemento organizador dos comportamentos é o medo.
Assim temos que todo comportamento de proteção evitatório da caça em relação ao predador, o chamado instinto de preservação, é originário do medo.
Até aqui, nenhuma novidade, mas o que nos interessa é a compreensão do medo enquanto organizador das vivências sociais. Desta forma, todo animal que vive em grupos, como os lobos, os leões, as hienas, os cachorros, os elefantes, as gralhas, as galinhas, etc,, desenvolve uma estratégia adaptativa que é a organização interna em termos de uma rígida hierarquia, denominando-se alfa, o indivíduo, ou casal, que domina o grupo.
Esta dominância tem vários objetivos, como por exemplo: entre os dingos e os lobos, somente o casal alfa se reproduz e desta forma garante-se que todos os esforços da matilha são dirigidos ao sucesso da sobrevivência dos filhotes. Já entre os elefantes, a matriarca organiza as marchas em busca de alimento e água, pelas savanas e florestas, apoiada pela excelente memória dos nichos e poços. As galinhas de maior posição hierárquica, as “bicadoras”, mais fortes e lutadoras, tem o direito de dormir nos galhos superiores das árvores, o que lhes facilita a sobrevivência em caso de ataque de raposas, cobras ou outros predadores.
Compete ao alfa a escolha da presa a ser perseguida, como acontece com os lobos, e toda a alcatéia o segue sem titubeios: seria uma grande confusão se cada um atacasse várias presas em potencial, provavelmente resultando em fracasso com risco para a própria sobrevivência.
O elemento que sustenta esta estrutura social é o medo: todos os integrantes do bando têm medo, imposto pela força e luta – às vezes a custa da própria vida – do indivíduo alfa e se algum integrante tentar arrebatar esta posição, terá que ser pela luta, pois afinal aquele não estará disposto a perder a liderança e a melhor oportunidade de reproduzir seu material genético de graça.
Pensando nossos antepassados, desde os tempos de Lucy, também nos organizamos com a mesma finalidade: sobrevivência da espécie. (Grifo do Boca)
Embora a disponibilidade sexual das fêmeas naqueles grupos primeiros – fato só observado também nos bonomos – pudesse afastar a tese da replicação genética individual, dando origem a cooperação, poder-se-ia atribuir ao homem alfa a organização em termos de defesa de território, conquista de outros, escolha da caça-alvo, etc.
E novamente aparece o medo-organizador!
Com o aparecimento da cultura, este medo foi moldurado pelo conceito de respeito . Assim passou-se a respeitar o alfa que, depois da noção de divindade, era personificado pelos sacerdotes, representantes diretos dos deuses na terra.
O passo seguinte foi a criação da figura dos reis, sempre apoiado, convenientemente, pelos sacerdotes, com os quais muitas vezes disputavam o poder terreno.
E assim caminhou a humanidade: o povo obedecia por respeito/medo aos Nabucodonosores, Darios, Alexandres e Césares, trabalhando na construção das pirâmides, seguindo seus líderes pelo deserto, combatendo nas Cruzadas, morrendo pelos reis, papas, barões e condes, Napoleões, Czares, Hitleres, Ozamas e aí por diante.
Na religião, dizia-se que o indivíduo era temente a Deus. Cultivava-se a obediência, geralmente quase cega, provada pelos rituais de iniciação, consolidadas pelas Ordens Religiosas de Cavalaria, aos livros sagrados, que eram considerados intocáveis e inquestionáveis.
O senhor feudal era servido com a própria vida, tanto pelo camponês como pelo samurai.
Repetia-se, de várias formas, o cerimonial ritualístico de confirmação do respeito/medo: as cerimônias religiosas, as pompas palacianas, os desfiles militares, etc..

“Freud, Woodstock, Quartier Latin e Yuri Gagarin”

Freud elaborou o conceito do medo da castração, no Complexo de Édipo, como forma de sustentação de uma certa dinâmica familiar e que teria um caráter universal.
Mas algo não deu certo: a partir de certo momento, como conseqüência direta das Grandes Guerras e a transformação da economia, de raiz agro-pecuária em industrial, com a ascensão do capitalismo e do “jeito americano de vida”, com a cultuação do prazer, na chamada cultura hedonista, sucumbe o respeito/medo, enterrado pelos dólares, hoje euros, drogas, sexo e rock’n roll.
Surge uma dicotomia cultural nítida: a americana e a européia, que pode muito bem ser vislumbrada nos movimentos dos anos 60′: o festival de Woodstock e a explosão do Quartier Latin.
Uma lembrança: Yuri Gagarin, o astronauta russo, quando chegou lá na órbita terrestre, disse em alto e bom tom, para que todos pudessem ouvir, que não via nenhum Deus por lá, embora a frase mais conhecida tivesse sido sobre a cor azul do planeta.
Pronto: naquele dia e hora morria Deus !!!
Uma nova ordem social surgia: a economia, o capital, certamente para a grande decepção daquele astronauta, se hoje fosse vivo.
O respeito cedeu lugar aos anseios de se adquirir o vil metal e ao prazer, inconteste então, que com ele se poderia comprar. O álcool, as drogas ilegais, e as legais também (os antidepressivos, mas este é um capítulo à parte) passaram a ser a ritualística da nova ordem.
Com isso, foi demolida a edificação dos valores da ordem social pautada pelo respeito/medo e em seu lugar surge uma cultura do prazer a qualquer custo.
Lembrando Althusser, os aparelhos ideológicos da manutenção destes novos elementos são:
1. A Família (a criadora): com a “perda” do exercício do pátrio poder, objeto inicial deste singelo escrito, redundando na não identidade do ser-pai e/ou ser-mãe, e o poder que desta situação emana.
2. A Escola (a formadora): com a ruína do sistema educacional público e, de certa maneira o privado também, tendo sido os mestres destituídos de qualquer expressão de poder e despojados do respeito/medo , podendo ser facilmente constatado no contato com professores quer de periferia (pelo medo das represálias à integridade física), quanto de nobres bairros (pela perda do emprego com os salários pagos pelos ricos papais).
3. A Igreja (a mantenedora): aqui podendo ser englobado o Estado, com a notória falência de seus ditames morais ou legais, junto ao cotidiano do cidadão, a tão evidente ausência do Estado em nosso país, desde Brasília até nossas fronteiras distantes.

Por não ser objeto original deste escrito, os dois últimos itens não serão aqui abordados, embora possam ser enfocados da mesma maneira, e assim passemos ao primeiro.

Voltando aos anos 50′: a Pediatria passa a “ressuscitar” as idéias de Freud e Benjamim Spock, acompanhado da versão tupiniquim, edita o livro Meu Filho, Meu Tesouro, com a versão própria do trauma primário. Lembro-me de um episódio pitoresco e exemplificador: com um grupo de colegas da Faculdade, nos anos 60′, fomos almoçar na casa de um professor, psicólogo e analista didata da Sociedade de Psicanálise, hoje estrela freqüente do Fantástico, e que foi indagado o que o teria motivado a nada fazer em relação ao seu filho que passou sorvete de sobremesa por toda sua cabeça, tendo o facultativo respondido que era para não o traumatizar!!! É a bobagem atingido o intestino da Igreja (denominação carinhosa daquela Sociedade).
Pediatras, psicólogos, psiquiatras, pedagogos, educadores, advogados, juízes, conselheiros tutelares passam a levantar esta bandeira, de forma a abolir o medo, e conseqüente respeito, dos processos educacionais. Questionam-se as cantigas e contos infantis, suspendem-se os castigos, substituindo-se pelo não-prêmio.
Logicamente aqui não se trata de maus tratos ou violência às crianças, lembrando os anúncios no Metro de Londres, nos anos 70′, pedindo aos pais que não quebrem, literalmente, seus filhos, com radiografias de fraturas de crianças (algumas chegaram a morrer). Assistimos horrorizados, na atualidade, os acontecimentos da menina Isabella, lembrando das muitas outras crianças que não são noticiadas pelos meios de comunicação. Espero que o leitor perceba que não é sobre isso que aqui trato.
Depois deste passeio pela História, voltemos ao ponto original: a perda do respeito/medo pelas novas gerações de crianças e todas as implicações que daí se originam: não se teme Deus (não há inferno com que se preocupar), Estado (de cada cem crimes cometidos em nosso país somente uma prisão se efetiva), políticos corruptos (nossos eleitores continuam votando neles), etc., lembrando cenas de um filme dos anos 60/70′ – Pequenos Assassinatos.
No âmbito de nossas crianças, não há mais medo do bicho papão, do homem do saco, da mula sem cabeça, e tantas outras figuras da nossa mitologia caipira. Mas também não se temem mais as notas de comportamento escolar, que reprovavam e hoje nem existe mais, nem das noções de pecado, falcatruas ou mesmo crime, tão enaltecidas, não pelas novelas, mas pelas notícias reais do nosso cotidiano.
Nos processos de psicoterapia destes casos tenho assinalado os exageros de uma maternagem, que se revela como nefasta aos filhos, bem expressa pelo dito popular “avós ricos, pais nobres, filhos pobres”.
O que tenho prescrito aos aflitos pais é a Defesa De Um Certo Medo, aqui entendida como base do respeito, envolvendo mudanças de paradigmas dos princípios que norteiam o pátrio poder.
Tecnicamente esta abordagem psicológica respalda-se nos ensinamentos de René Spitz, quanto à gênese do SIM/NÃO, sendo que os detalhes são específicos para cada caso.
Mas às vezes percebo-me como aquele velho rabino que há mais de 90 anos rezava em frente ao Muro, pedindo paz e, indagado pelo repórter como se sentia, respondeu que se sentia falando com um muro…
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Conclusão do Boca no Trombone

Com seu conhecimento científico sofisticado, Armando dá a mesma receita indicada por mim no referido artigo a respeito da barbárie nas salas de cinema. Transcrevo a minha “receita”:

Curioso que numa época em que seguranças imensos fardados de ternos pretos circulam por todo lugar o tempo todo, nas salas de cinema não exista um único funcionário para reprimir e até mesmo expulsar aqueles que incomodam. Se for complicado explicar para o segurança o que incomoda, basta fazer que ele assista àquele filminho de proibições que já existe e dar autoridade para ele expulsar da sala quem estiver desobedecendo o que diz o filminho.

Enquanto meu método não é implantado, ir ao cinema e querer ter ambiente minimamente propício para desfrutar do filme, passa a ser pretensão tão grande quanto querer que a vedete sai da tela e venha se sentar na poltrona ao lado, com direito a um champagne no seu apartamento em seguida!!!

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Armando de Oliveira Neto
Médico Psiquiatra
Aposentado do Serviço de Psiquiatria e Psicologia Médica
Do Hospital do Servidor Público Estadual
Médico Assistente do Hospital Infantil Cândido Fontoura
Professor/Supervisor pela Federação Brasileira de Psicodrama.